Para relaxar, em véspera de feriadão e em plena Semana Santa, compartilho um conto de minha autoria.
O Boitatá do
Ibirapuera
Questões profissionais me levaram
a morar cerca de um ano em São Paulo, em certa época da minha vida. Vivia em um
flat na Consolação, a mais ou menos umas 3 quadras da Paulista em direção à
Oscar Freire. Era uma localização bastante favorável em dias de semana, com
taxis abundantes e, sendo perto da Paulista, então, era uma barbada. Sempre
gostei de caminhar, então essa conjunção de fatores fez com que eu me tornasse um
andarilho, fazia quase todos os meus itinerários a pé.
Inclusive, vencendo o medo de ser
esmagado pela turba, de me perder na cidade, essas bobagens que nos são
incutidas pelos telejornais, aprendi a andar de metrô. À exceção de Porto
Alegre, onde mesmo sem saber nada ainda te sobra 50% de chance de pegar o trem
para o destino correto, aprender a usar o metrô em São Paulo requer o mesmo
processo de quem tem que pegar o metrô em Nova Iorque, Tóquio, Rio ou outra metrópole:
no começo tu tens que ter um mapa das linhas e estações e anotar onde embarcas,
onde fazes as transferências e onde desces. Eu, como engenheiro, não apenas
estudei, mas fiz um verdadeiro tratado das linhas do metrô de São Paulo. Estudei
tudo mesmo. E, com meu projeto dentro do celular, eu aprendi a me deslocar para
qualquer ponto da cidade, até mesmo às regiões periféricas.
Eu esnobava. Definia minhas
agendas para estar na rua horários de pouco movimento e cruzava a cidade de
ponta a ponta em tempo recorde. Sentia-me, não, eu ERA um mestre das trilhas
urbanas. Até informação para os habitantes locais eu comecei a dar, na rua,
quando solicitado (o que passou a ocorrer com frequência, dada minha aparência
de sabedor de todos os segredos da cidade).
Confiante nas minhas habilidades
de ninja da selva de concreto, comecei a ousar cada vez mais. Aos finais de
semana, desenhava traçados inusitados para caminhar a pé e, pondo-os em
prática, conhecia cada vez mais da cidade e de seus detalhes, mazelas, mistérios
e surpresas. Retornava à minha base exausto, porém feliz e orgulhoso dos meus
feitos.
Certo domingo decidi empreitar a
mais radical jornada que eu poderia pensar: um roteiro a pé partindo da minha
residência pela manhã em direção à Praça da República, de lá ao bairro da
Liberdade para almoçar, descer ao Ibirapuera para passar a tarde e, finalmente
retornar para casa ao cair da noite, planejando caminhar na volta por entre as
mansões nas imediações entre as ruas Estados Unidos e Brasil, passando é claro
pela Oscar Freire. O dia estava ensolarado e era pleno verão. Experiente e
vivido que me considerava, nem dei bola para calcular distâncias, dei uma
olhada rápida no Google Maps, botei os tênis e ganhei as ruas. Para quem ia a
pé do Parcão à Redenção só por preguiça de tirar o carro da garagem, aquilo
seria moleza.
Na primeira perna na viagem, cujo
destino era a República, decidi ir pela Augusta, curtindo a paisagem
alternativa e os rescaldos da noitada anterior que, por ter sido sábado, foi
fortíssima na região. Ainda havia pessoas na vibração da balada, alguns
finalizando, outros já dormindo na calçada mesmo, e muitos ainda bebendo e festejando.
Essa é a boemia de Sampa, só vendo (e vivenciando de leve, uma que outra vez)
para compreender.
Uma hora depois, chegando na
República, fui direto à Galeria do Rock que, por ser domingo, descobri estar
fechada. Pena. Sem descansar, ajustei meu azimute para seguir viagem à região
da Liberdade.
Confesso que esse novo trajeto me
apresentou desafios maiores, tendo em vista que há muitos locais na cidade que
não foram desenhados para pedestres. As manobras necessárias, as escolhas entre
um caminho ou outro, retornos, impedimentos e outros contratempos – fora o
temor constante de ser assaltado em determinados pontos desertos àquela hora –
me deixaram bastante cansado.
Cheguei no centrinho da Liberdade
à hora do almoço. Excelente, eu estava faminto e morto de tanto caminhar.
Escolhi um restaurante (oriental, é óbvio) ao acaso, pela aparência. Tinha uma
moça na porta entregando folhetos, perguntei a ela sobre preço e pratos, achei
as respostas convenientes e ali me abanquei. Era um bufê honesto, aparentemente;
ar condicionado forte. Tinha um guioza com um sabor bem peculiar, um tanto
picante, gostei e comi vários. Poucas pessoas almoçando ali, ao menos naquela
hora.
Já com o bandulho cheio, peguei
uma garrafa de água gelada e retomei meu caminho, agora com destino ao parque
do Ibirapuera, onde planejava curtir o seu ambiente agradável. Para tornar
minha odisseia mais fácil, decidi caminhar até a Brigadeiro Luis Antônio e de
lá seguir reto até o destino final, assim evitando os contratempos que tive na
etapa anterior. A tarde estava quente e isso tornava a caminhada mais pesada,
mas eu seguia adiante com alegria por saber que o pior da jornada já havia
passado. Caminhando e pensando.
Na altura do cruzamento com a
Paulista, percebi que tinha alguma coisa errada com meu corpo. Sentia-me fraco,
exausto, sem forças e com uma dorzinha de barriga fraca, mas chata. Prossegui
com sofrimento. Parei numa esquina, dei uma olhada no mapa no celular, ainda
estava longe. Vou pegar um taxi e ir para casa, pensei. Tomei um gole da água,
mas estava quente e isso piorou minhas sensações de prostração. A dor aumentava,
agora com convulsões nas tripas.
Sentei numa mureta à sombra para
respirar um pouco e pensar. Cheguei a lembrar do guioza apimentado, mas por que
eu fui comer tanto, precisava comer cinco guiozas? Uns dez minutos depois, tive
a sensação de ter melhorado um pouco e isso me animou a seguir em frente a pé
mesmo.
Pura ilusão. Eu praticamente
rastejava pela longa avenida.
Nas proximidades do parque fui
obrigado a acelerar, por pior que fosse o sacrifício, em função das dores que
eu sentia. Eu precisava ir ao banheiro urgente, em no máximo trinta segundos iria
eclodir uma catástrofe e eu ficaria todo pintado de bosta da cintura para
baixo. Restaurante de merda, amanhã vou voltar lá, quebrar tudo e obrigar a
guria dos folhetos a comer vinte daqueles guiozas estragados, quero que ela
cague as tripas, exatamente o que vai acontecer comigo em poucos segundos.
Não sei como, consegui evitar o
pior e encontrei um banheiro químico instalado em uma das entradas do
Ibirapuera. Era sujo, fedorento, asqueroso, precário, porém maravilhoso.
Resolvida a minha urgência de
forma minimamente digna, adentrei ao território do parque e comecei a andar por
uma das diversas vias, sem rumo certo, apreciando a paisagem. Foi uma questão
de minutos para meu mal-estar retornar, agora sob a forma de uma forte tontura.
Cambaleante, esbarrando nas pessoas, que me olhavam e diziam coisas sobre eu
ter bebido demais, busquei sair daquele caminho atulhado de gente e entrei em
uma alameda deserta com farta vegetação ao redor. Caminhei mais uns dez metros
e sentei, não, caí debaixo de uma árvore. Vou descansar um pouco aqui. É
evidente que termina aqui minha expedição, assim que estiver em condições de me
colocar de pé novamente, pegarei um taxi direto para casa. Eu pensava em tudo
isso, arfava e dentro da minha cabeça o mundo girava e zunia. O calor à sombra
era mortal.
Peguei no sono ali mesmo.
Despertei na mesma exata posição
corporal, mas sentindo-me totalmente recuperado. Meu susto agora foi outro:
tudo escuro ao meu redor. Olhei no relógio, eram três da madrugada. Celular sem
bateria. Puta que pariu, dormi demais, que perigo, ninguém me viu aqui, ou se
viu não me acordou, podiam ter me matado, e agora, será que tem alguém aí, o
que vou fazer a uma hora dessas, vou olhar em volta, ficar quieto, não quero
ser assaltado e morto, e nem tomar um tiro, talvez seja melhor eu ficar aqui até
que o dia amanheça, são só mais três horas...
Onde eu estava era um breu, mas
eu enxergava alguns postes de luz ao longe. No entorno o silêncio era cortado
só pelo balanço das árvores ao vento e por algum pássaro. Não via viva alma,
talvez só houvesse as almas penadas. Pensei muito em me deslocar para a borda
do parque e procurar alguma saída, mas sair do Ibirapuera àquela hora? Para ser
assaltado na rua?
Resolvi ficar por ali mesmo,
sentado, vigilante. Fui me acalmando, me acalmando... afinal, eu era o mestre
das veredas da selva de pedra, o Tarzan do asfalto, nascido em Porto Alegre e
criado no interior do Rio Grande do Sul... nada iria me pegar ali desprevenido.
Fiquei tão sereno que cheguei a cochilar por um breve tempo.
Em uma das vezes em que abri os
olhos para vigiar o entorno, reparei numa luz distante que se movia devagar.
Não era poste de iluminação, poderia ser um carro. Ou uma moto. Onde está o
barulho do motor? O engraçado é que a luz se movia devagar dentro da mata. Às
vezes desaparecia por de trás de um tronco ou moita, para surgir novamente,
mais próxima de mim. É um vigilante do parque com uma lanterna na mão, pensei.
Mas por enquanto não vou me anunciar, deixa eu ter certeza. Fiquei mudo, sem
respirar, completamente abaixado e oculto pelas plantas em volta de mim. E a
coisa da luz chegando e chegando cada vez mais próxima. Em dado momento, pela
proximidade, tive a impressão de ver a luz serpentear, mas não dei muita bola
para isso. Quando a coisa chegou à beira da margem oposta do laguinho que
estava a uns cinquenta metros à minha frente, senti-me seguro de apostar em uma
anunciação. Era, sem dúvida, um guarda com uma lanterna na mão. Por via das
dúvidas, tinha o lago entre nós, então isso me dava confiança. Saí da minha
toca e caminhei até a margem do meu lado, ficando frente à frente com a coisa,
laguinho no meio. Levantei a mão em um aceno, pensando que talvez o guarda não
conseguisse me enxergar, pois a claridade do amanhecer ainda era pouca.
O que vi na sequência me assombra
até hoje. Não era guarda coisa nenhuma. Era um boitatá e dos grandes! O bicho
me viu e, para meu pavor, desembestou na minha direção POR DENTRO DO LAGO. Não
afundava, rastejava sobre a água. E a luz que eu via era a cabeça do monstro.
Não cogitei perder nem mais um milésimo de segundo tentando entender melhor
aquela coisa, dei meia volta e corri como quem corre do diabo (talvez o boitatá
seja até pior que o capeta). Fui pelo meio do mato na certeza de conseguir
chegar a algum portão de saída. Olhava para trás de vez em quando para ver se
tinha despistado o tinhoso, mas ele me perseguia incansável, cada vez mais
perto. Cheguei na cerca da borda do Ibirapuera e comecei a percorrer sua
extensão, correndo o máximo que conseguia, procurando uma abertura. Eu estava
sem fôlego, em pânico, olhava e o bicho sempre atrás. Finalmente, encontrei uma
parte da cerca danificada, que me permitiu passar para o lado de fora. Sem
vacilar, cruzei a avenida República do Líbano e fui singrando as ruas
seguintes, tentando encontrar por instinto a direção de casa. Quadra após
quadra correndo sem parar, virando à direita, à esquerda, tudo para despistar
aquela criatura com a qual já tinha tido contato há muitos anos, quando criança,
em um sítio de meus avós. De vez em quando eu olhava para trás e tinha a
impressão de ainda vê-la atrás de algum carro estacionado, espreitando para me
tornar uma presa de seus inimagináveis intentos diabólicos.
Quando cheguei ao meu edifício, o
porteiro se assustou com minha aparência suada, assustada e pálida, quase não
abriu a porta. Cheguei em meu apartamento e me tranquei.
Levei semanas para conseguir
dormir sem uso de remédios. Mesmo depois de anos, de vez em quando ainda tenho
pesadelos. Nunca mais andei a pé por São Paulo à noite.
Esses dias, contando essa
história traumática a amigos ali no Beer Street, na Goethe, em Porto Alegre,
ainda tive que escutar: tu tá louco meu, onde já se viu boitatá fora do Rio
Grande do Sul?
No Ibirapuera tem. E te digo, velho, aquele é
maior do que o que vi no Central Park, nas férias ano passado.