quinta-feira, 24 de março de 2016

O Boitatá do Ibirapuera

Para relaxar, em véspera de feriadão e em plena Semana Santa, compartilho um conto de minha autoria.



O Boitatá do Ibirapuera

Questões profissionais me levaram a morar cerca de um ano em São Paulo, em certa época da minha vida. Vivia em um flat na Consolação, a mais ou menos umas 3 quadras da Paulista em direção à Oscar Freire. Era uma localização bastante favorável em dias de semana, com taxis abundantes e, sendo perto da Paulista, então, era uma barbada. Sempre gostei de caminhar, então essa conjunção de fatores fez com que eu me tornasse um andarilho, fazia quase todos os meus itinerários a pé.

Inclusive, vencendo o medo de ser esmagado pela turba, de me perder na cidade, essas bobagens que nos são incutidas pelos telejornais, aprendi a andar de metrô. À exceção de Porto Alegre, onde mesmo sem saber nada ainda te sobra 50% de chance de pegar o trem para o destino correto, aprender a usar o metrô em São Paulo requer o mesmo processo de quem tem que pegar o metrô em Nova Iorque, Tóquio, Rio ou outra metrópole: no começo tu tens que ter um mapa das linhas e estações e anotar onde embarcas, onde fazes as transferências e onde desces. Eu, como engenheiro, não apenas estudei, mas fiz um verdadeiro tratado das linhas do metrô de São Paulo. Estudei tudo mesmo. E, com meu projeto dentro do celular, eu aprendi a me deslocar para qualquer ponto da cidade, até mesmo às regiões periféricas.

Eu esnobava. Definia minhas agendas para estar na rua horários de pouco movimento e cruzava a cidade de ponta a ponta em tempo recorde. Sentia-me, não, eu ERA um mestre das trilhas urbanas. Até informação para os habitantes locais eu comecei a dar, na rua, quando solicitado (o que passou a ocorrer com frequência, dada minha aparência de sabedor de todos os segredos da cidade).
Confiante nas minhas habilidades de ninja da selva de concreto, comecei a ousar cada vez mais. Aos finais de semana, desenhava traçados inusitados para caminhar a pé e, pondo-os em prática, conhecia cada vez mais da cidade e de seus detalhes, mazelas, mistérios e surpresas. Retornava à minha base exausto, porém feliz e orgulhoso dos meus feitos.

Certo domingo decidi empreitar a mais radical jornada que eu poderia pensar: um roteiro a pé partindo da minha residência pela manhã em direção à Praça da República, de lá ao bairro da Liberdade para almoçar, descer ao Ibirapuera para passar a tarde e, finalmente retornar para casa ao cair da noite, planejando caminhar na volta por entre as mansões nas imediações entre as ruas Estados Unidos e Brasil, passando é claro pela Oscar Freire. O dia estava ensolarado e era pleno verão. Experiente e vivido que me considerava, nem dei bola para calcular distâncias, dei uma olhada rápida no Google Maps, botei os tênis e ganhei as ruas. Para quem ia a pé do Parcão à Redenção só por preguiça de tirar o carro da garagem, aquilo seria moleza.

Na primeira perna na viagem, cujo destino era a República, decidi ir pela Augusta, curtindo a paisagem alternativa e os rescaldos da noitada anterior que, por ter sido sábado, foi fortíssima na região. Ainda havia pessoas na vibração da balada, alguns finalizando, outros já dormindo na calçada mesmo, e muitos ainda bebendo e festejando. Essa é a boemia de Sampa, só vendo (e vivenciando de leve, uma que outra vez) para compreender.

Uma hora depois, chegando na República, fui direto à Galeria do Rock que, por ser domingo, descobri estar fechada. Pena. Sem descansar, ajustei meu azimute para seguir viagem à região da Liberdade.

Confesso que esse novo trajeto me apresentou desafios maiores, tendo em vista que há muitos locais na cidade que não foram desenhados para pedestres. As manobras necessárias, as escolhas entre um caminho ou outro, retornos, impedimentos e outros contratempos – fora o temor constante de ser assaltado em determinados pontos desertos àquela hora – me deixaram bastante cansado.

Cheguei no centrinho da Liberdade à hora do almoço. Excelente, eu estava faminto e morto de tanto caminhar. Escolhi um restaurante (oriental, é óbvio) ao acaso, pela aparência. Tinha uma moça na porta entregando folhetos, perguntei a ela sobre preço e pratos, achei as respostas convenientes e ali me abanquei. Era um bufê honesto, aparentemente; ar condicionado forte. Tinha um guioza com um sabor bem peculiar, um tanto picante, gostei e comi vários. Poucas pessoas almoçando ali, ao menos naquela hora.

Já com o bandulho cheio, peguei uma garrafa de água gelada e retomei meu caminho, agora com destino ao parque do Ibirapuera, onde planejava curtir o seu ambiente agradável. Para tornar minha odisseia mais fácil, decidi caminhar até a Brigadeiro Luis Antônio e de lá seguir reto até o destino final, assim evitando os contratempos que tive na etapa anterior. A tarde estava quente e isso tornava a caminhada mais pesada, mas eu seguia adiante com alegria por saber que o pior da jornada já havia passado. Caminhando e pensando.
Na altura do cruzamento com a Paulista, percebi que tinha alguma coisa errada com meu corpo. Sentia-me fraco, exausto, sem forças e com uma dorzinha de barriga fraca, mas chata. Prossegui com sofrimento. Parei numa esquina, dei uma olhada no mapa no celular, ainda estava longe. Vou pegar um taxi e ir para casa, pensei. Tomei um gole da água, mas estava quente e isso piorou minhas sensações de prostração. A dor aumentava, agora com convulsões nas tripas.
Sentei numa mureta à sombra para respirar um pouco e pensar. Cheguei a lembrar do guioza apimentado, mas por que eu fui comer tanto, precisava comer cinco guiozas? Uns dez minutos depois, tive a sensação de ter melhorado um pouco e isso me animou a seguir em frente a pé mesmo.

Pura ilusão. Eu praticamente rastejava pela longa avenida.

Nas proximidades do parque fui obrigado a acelerar, por pior que fosse o sacrifício, em função das dores que eu sentia. Eu precisava ir ao banheiro urgente, em no máximo trinta segundos iria eclodir uma catástrofe e eu ficaria todo pintado de bosta da cintura para baixo. Restaurante de merda, amanhã vou voltar lá, quebrar tudo e obrigar a guria dos folhetos a comer vinte daqueles guiozas estragados, quero que ela cague as tripas, exatamente o que vai acontecer comigo em poucos segundos.

Não sei como, consegui evitar o pior e encontrei um banheiro químico instalado em uma das entradas do Ibirapuera. Era sujo, fedorento, asqueroso, precário, porém maravilhoso.

Resolvida a minha urgência de forma minimamente digna, adentrei ao território do parque e comecei a andar por uma das diversas vias, sem rumo certo, apreciando a paisagem. Foi uma questão de minutos para meu mal-estar retornar, agora sob a forma de uma forte tontura. Cambaleante, esbarrando nas pessoas, que me olhavam e diziam coisas sobre eu ter bebido demais, busquei sair daquele caminho atulhado de gente e entrei em uma alameda deserta com farta vegetação ao redor. Caminhei mais uns dez metros e sentei, não, caí debaixo de uma árvore. Vou descansar um pouco aqui. É evidente que termina aqui minha expedição, assim que estiver em condições de me colocar de pé novamente, pegarei um taxi direto para casa. Eu pensava em tudo isso, arfava e dentro da minha cabeça o mundo girava e zunia. O calor à sombra era mortal.
Peguei no sono ali mesmo.

Despertei na mesma exata posição corporal, mas sentindo-me totalmente recuperado. Meu susto agora foi outro: tudo escuro ao meu redor. Olhei no relógio, eram três da madrugada. Celular sem bateria. Puta que pariu, dormi demais, que perigo, ninguém me viu aqui, ou se viu não me acordou, podiam ter me matado, e agora, será que tem alguém aí, o que vou fazer a uma hora dessas, vou olhar em volta, ficar quieto, não quero ser assaltado e morto, e nem tomar um tiro, talvez seja melhor eu ficar aqui até que o dia amanheça, são só mais três horas...

Onde eu estava era um breu, mas eu enxergava alguns postes de luz ao longe. No entorno o silêncio era cortado só pelo balanço das árvores ao vento e por algum pássaro. Não via viva alma, talvez só houvesse as almas penadas. Pensei muito em me deslocar para a borda do parque e procurar alguma saída, mas sair do Ibirapuera àquela hora? Para ser assaltado na rua?
Resolvi ficar por ali mesmo, sentado, vigilante. Fui me acalmando, me acalmando... afinal, eu era o mestre das veredas da selva de pedra, o Tarzan do asfalto, nascido em Porto Alegre e criado no interior do Rio Grande do Sul... nada iria me pegar ali desprevenido. Fiquei tão sereno que cheguei a cochilar por um breve tempo.

Em uma das vezes em que abri os olhos para vigiar o entorno, reparei numa luz distante que se movia devagar. Não era poste de iluminação, poderia ser um carro. Ou uma moto. Onde está o barulho do motor? O engraçado é que a luz se movia devagar dentro da mata. Às vezes desaparecia por de trás de um tronco ou moita, para surgir novamente, mais próxima de mim. É um vigilante do parque com uma lanterna na mão, pensei. Mas por enquanto não vou me anunciar, deixa eu ter certeza. Fiquei mudo, sem respirar, completamente abaixado e oculto pelas plantas em volta de mim. E a coisa da luz chegando e chegando cada vez mais próxima. Em dado momento, pela proximidade, tive a impressão de ver a luz serpentear, mas não dei muita bola para isso. Quando a coisa chegou à beira da margem oposta do laguinho que estava a uns cinquenta metros à minha frente, senti-me seguro de apostar em uma anunciação. Era, sem dúvida, um guarda com uma lanterna na mão. Por via das dúvidas, tinha o lago entre nós, então isso me dava confiança. Saí da minha toca e caminhei até a margem do meu lado, ficando frente à frente com a coisa, laguinho no meio. Levantei a mão em um aceno, pensando que talvez o guarda não conseguisse me enxergar, pois a claridade do amanhecer ainda era pouca.

O que vi na sequência me assombra até hoje. Não era guarda coisa nenhuma. Era um boitatá e dos grandes! O bicho me viu e, para meu pavor, desembestou na minha direção POR DENTRO DO LAGO. Não afundava, rastejava sobre a água. E a luz que eu via era a cabeça do monstro. Não cogitei perder nem mais um milésimo de segundo tentando entender melhor aquela coisa, dei meia volta e corri como quem corre do diabo (talvez o boitatá seja até pior que o capeta). Fui pelo meio do mato na certeza de conseguir chegar a algum portão de saída. Olhava para trás de vez em quando para ver se tinha despistado o tinhoso, mas ele me perseguia incansável, cada vez mais perto. Cheguei na cerca da borda do Ibirapuera e comecei a percorrer sua extensão, correndo o máximo que conseguia, procurando uma abertura. Eu estava sem fôlego, em pânico, olhava e o bicho sempre atrás. Finalmente, encontrei uma parte da cerca danificada, que me permitiu passar para o lado de fora. Sem vacilar, cruzei a avenida República do Líbano e fui singrando as ruas seguintes, tentando encontrar por instinto a direção de casa. Quadra após quadra correndo sem parar, virando à direita, à esquerda, tudo para despistar aquela criatura com a qual já tinha tido contato há muitos anos, quando criança, em um sítio de meus avós. De vez em quando eu olhava para trás e tinha a impressão de ainda vê-la atrás de algum carro estacionado, espreitando para me tornar uma presa de seus inimagináveis intentos diabólicos.

Quando cheguei ao meu edifício, o porteiro se assustou com minha aparência suada, assustada e pálida, quase não abriu a porta. Cheguei em meu apartamento e me tranquei.

Levei semanas para conseguir dormir sem uso de remédios. Mesmo depois de anos, de vez em quando ainda tenho pesadelos. Nunca mais andei a pé por São Paulo à noite.

Esses dias, contando essa história traumática a amigos ali no Beer Street, na Goethe, em Porto Alegre, ainda tive que escutar: tu tá louco meu, onde já se viu boitatá fora do Rio Grande do Sul?

No Ibirapuera tem. E te digo, velho, aquele é maior do que o que vi no Central Park, nas férias ano passado.









2 comentários:

  1. Excelente crônica! Simplesmente quem conhece São Paulo viaja, quando percorre essas linhas escritas com tamanha maestria e humor de sobra. Me rendeu grandes gargalhadas. Preciso da marca da água pra beber também kkkkkkkk

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